O mercado de saúde suplementar tem passado, notadamente desde os anos 90, por ciclos de controle governamental intensificado, imposições relacionadas com extensão das coberturas e intervenções diretas na gestão de agentes depois que sua operação se revelou inviável; sob condições de relativa liberdade, as tendências de concentração e resultados insatisfatórios têm gerado instabilidade e elevados custos transacionais. 

As tentativas de solução voltadas para certo tipo de problemas em cada fase não impedem que outros sejam gerados, configurando uma tendência geral de declínio da qualidade, aumento de custos, conflitos, insatisfação dos clientes, aumento do número de empresas insolventes, intensificação do controle oficial e ineficiência.

 

I. Quando o bem é infinito mas o preço não é zero

 

Mercados de bens universais funcionam de um jeito diferente. Certa coisas os mercados não são capazes de resolver bem, especialmente quando se pretende que sejam bens ou direitos universais como faz a Constituição brasileira com assuntos de saúde. Pode acontecer que as expectativas da sociedade se situem além do valor que ela própria consegue produzir para si, em termos agregados. Não é exatamente um problema dos mercados e sim, e sim do patamar em que se situam as expectativas, dos arranjos que são criados para atendê-las e da maneira de distribuir o valor gerado pelo esforço produtivo: há os ganhos para os que produzem esse esforço e para os que o recebem; um mau arranjo pode prejudicar a todos e fazer com que o funcionamento do conjunto situe os resultados abaixo de seu potencial.

A considerar o número de pessoas a serem atendidas, as disparidades de renda existentes e seu grau de concentração, o crescimento e o volume dos custos, fatores demográficos e os hábitos de saúde da população, é difícil supor que um sistema baseado somente no pagamento individual do atendimento vá dar conta do conjunto de necessidades do conjunto, sob condições de equilíbrio: ou se vê afetado o escopo (restringem-se os tratamentos, tipos de atendimento, condições e benefícios) ou se ressente a qualidade para grandes contingentes. 

Soluções desse tipo são aplicáveis a camadas estreitas de demandantes, sob condições também restritas. Podem ser aceitas por pessoas que, sem opção razoável, dispõem de algum volume de recursos e têm como se sujeitar à condição de mercado, isto é, à determinação dada pelas curvas de oferta e demanda; é uma solução parcial, no sentido de que deixa de fora a maior parte do universo a ser atendido, em um país no qual se entende que direito à saúde deveria ser universal. O equilíbrio que não vier mediante alianças e acordos poderá vir depois, sob a forma de intervenção e novas regras de distribuição do bolo. 

 

O mercado de saúde é diferente. Falta transparência nos preços praticados, a assimetria de informação é elevada; não é muito precisa a vinculação entre eles e os respectivos serviços; as condições concretas de entrada e saída não são limitantes de elevada intensidade, mas o conhecimento de como funcionam a atividade e o mercado o são; exige especialização técnica que o demandante nem sempre tem como avaliar; não é fácil para o consumidor fazer comparações entre as qualidades de serviços fornecidos por diferentes agentes e além disso os indutores de eficiência dos agentes são um tanto difusos.

Para ir até onde o mercado não vai. As questões que se colocam são as de se, no que diz respeito a alocação de recursos produtivos, algum arranjo poderia substituir o de mercado; se a competição dirigida será melhor para o sistema do que a livre competição. É possível que a resposta para as duas perguntas seja uma questão de grau: uma intervenção que restrinja parte da liberdade dos agentes sem suprimi-la, crie motivadores que inclinem os agentes a atuar de maneira mais próxima do desejado e estabeleça critérios para ações dirigidas a públicos menos favorecidos poderá se justificar pela alegação de que estará atendendo o caráter social do problema da saúde; poderá atingir estes objetivos com competência ou não, mas a ideia de promover reformas em um sistema notadamente disfuncional possivelmente encontrará na sociedade ouvidos dispostos a aceitar as mudanças.

 

 

II. Direcionar a competitividade para aquilo que vale a pena

 

Os players que operam no mercado são competitivos entre si. Eles disputam espaços com notável grau de semelhança entre seus serviços e alta taxa de substitutibilidade; monitoram aquilo que os demais concorrentes oferecem de novo; não raro competem pelas mesmas faixas de usuários, diante dos mesmos agentes arrebanhadores que são as empresas nas quais os usuários finais trabalham. Existe certa rivalidade e é intensa, mas o sistema incongruente de indução faz com que os competidores se voltem para conflitos que não beneficiam o desempenho do conjunto, absorvam energia que poderia ser aplicada a outras coisas e acentuem desequilíbrios capazes de distanciar ainda mais a situação real da esperada.

Afinal, para que serve o sistema? Quando os agentes que compõem um sistema não são capazes de estabelecer relações em equilíbrio, ou o sistema entra em desagregação ou é criada uma nova ordem, baseada em diferentes regras e visão, objetivos, critérios e indutores de ação. Uma questão que se coloca é a de qual valor o sistema deve gerar. Com base nesta definição é possível estabelecer meios de motivar os agentes a melhorar seu desempenho e eficiência, reduzindo erros. Evita também que produzam bens e serviços cujo tipo ou quantidade prejudique o sistema. 

Não é raro que, em ramos como os de transporte público, limpeza e segurança, governos implementem sistemas de credenciamento usando como base para remunerar agentes contratados aquilo que estabelece como indicador adequado de benefício público gerado ou metas de eficiência e uso racional de recursos.

No caso da saúde, métricas ligadas a cuidados preventivos calibradas conforme as necessidades de regiões e grupos de clientes poderão ter melhor efeito, e mais estável, do que condições em que impere liberdade absoluta. Na verdade não há impedimento a que cada agente estabeleça para si indicadores e direcionadores de ações que privilegiem prevenção e saúde; mas a considerar a experiência das últimas décadas, não parece natural, garantido ou espontâneo que venham a atuar assim.

 

Réguas diferentes para medir coisas distintas. Uma questão que se coloca é a da possibilidade de reorientar o sistema com base em novos critérios de desempenho que encorajem a adoção de práticas voltadas para a entrega de melhor qualidade a custo mais baixo para o usuário. Uma das condições para isso seria ter informações transparentes sobre as atividades de hospitais, médicos, fornecedores de serviços e mediadores; outra é a liberdade de escolha; outra é ter padrões de serviços que possibilitem comparação. 

Desejavelmente parte das informações estaria voltada para a monitoração da condição de saúde do usuário, e se referiria ao ciclo de acompanhamento e prevenção, diagnóstico, tratamento e controle dos resultados. Um usuário que possa comparar estas informações e tenha liberdade de escolha poderia tomar decisões com base razoáveis, dando preferência a agentes que considerassem mais capazes de atender suas necessidades, os agentes seriam instados a oferecer serviços de melhor qualidade e os mediadores e as empresas contratantes de usuários teriam instrumentos para orientar os clientes finais na direção de fornecedores de serviços capazes de oferecer melhor combinação de qualidade e custo.

 

 

III. Até onde um novo arranjo pode ir

 

Não há certeza de que contaremos com soluções baseadas em visões totalizantes; se acontecer de serem formuladas, não existem garantias de que funcionarão conforme o esperado.

Nos Estados Unidos, as críticas feitas aos resultados produzidos para os usuários, aos desequilíbrios da atividade e aos aumentos de custos produziram em 2010 o maior projeto de mudança no sistema de saúde americano, consubstanciado na lei chamada Patient Protection and Affordable Care Act. Ela estabeleceu um modelo que obriga todos os cidadãos a pagarem (há uma penalidade para quem não adere a nenhum plano), fornece subsídio aos mais pobres e obriga os agentes a aceitar uma gama significativa de doenças pré-existentes.

Sua implementação se baseou na ideia de induzir as empresas a oferecerem seguro para seus empregados, e o equilíbrio do sistema se fundamenta na cobertura de gastos dos mais doentes pelos usuários de melhor saúde. Para que fosse aplicado, foi preciso padronizar preços e procedimentos de avaliação e classificação dos prestadores de serviços; fixar unidades de medida para os agentes; e estabelecer critérios de credenciamento que obrigaram a uniformizar as categorias de serviços.

As consequências, na prática, foram continuidade do movimento de elevação dos custos, contas que não fecham e vários agentes em diversos estados deixando de aderir ao sistema. A presença de um excedente de direitos a atender sem suficiente cobertura levou a um tipo de desequilíbrio diferente do anterior e com outra conformação geográfica, porém não menos significativo.

 

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Parte do interesse que o setor de saúde suplementar desperta nas pessoas que o estudam provém do fato de que ele experimenta problemas em qualquer lugar do mundo. Uma outra parte do interesse deriva do fato de ser palco de grandes experimentos regulatórios que nunca fracassam por inteiro, mas nunca são inteiramente bem sucedidos. O setor é também um microcosmo que reúne forças e interesses divergentes, e no qual os mecanismos de mercado são testados de variadas formas. Ele é também terreno fértil para inovações, disputas de poder e teste de modelos que buscam explicar relações de agentes econômicos entre si e destes com o governo.

O momento vivido por ele no Brasil cristaliza hoje desacertos acumulados ao longo de muitos anos, é marcado em seu conjunto por resultados reconhecidamente insatisfatórios e pela aproximação de limites que parecem ser críticos. É difícil saber se mudanças de grande abrangência produzirão resultados satisfatórios; por outro lado, a experiência das últimas décadas permite desconfiar que soluções restritas, parciais e de curto alcance tornarão a situação ainda pior.

 

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Este artigo é uma versão condensada de uma parte do E-book Uma Saúde a Repensar: dinâmica competitiva e espaços a ocupar no setor de saúde suplementar, escrito por mim recentemente e que reúne textos sobre posicionamento estratégico, tendências e desafios do setor. 

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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.

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